segunda-feira, 12 de novembro de 2007

O último refúgio - Uri Avnery

ISRAEL É uma ilha no oceano global. Vivemos numa bolha. Esta semana, fui obrigado a lembrar-me disso.

Estava voltando da Alemanha para casa. Na véspera de eu embarcar, todas as redes de televisão, das CNN e BBC aos canais alemães, noticiavam os eventos do Paquistão. No avião, abri o tablóide de maior circulação em Israel, o Yedioth Aharonoth, para ler sobre a confusão dos paquistaneses. Não havia sinal dela na primeira página. Nem na segunda. Encontrei uma nota pequena na página 27. As primeiras páginas estavam dedicadas a assunto muito mais importante: os gritos de protesto de torcedores de futebol, todos direitistas, quando lhes pediram que ficassem em pé, em homenagem à memória de Yitzhak Rabin.

Dia seguinte, Yedioth descobriu um ângulo segundo o qual, finalmente, o Paquistão chegou à primeira página: o medo de que a bomba nuclear paquistanesa caia nas mãos de Osama bin Laden, que a usaria contra Israel. Aleluia! Outra vez, afinal, há algo para temermos.

Mas o putsch armado por Pervez Musharaf é sério. Pode bem ter efeitos de longo alcance para todo o mundo – e, em particular, para Israel.


A PRINCIPAL vítima – além, é claro, das centenas de ativistas políticos que foram jogados nas prisões – é George W. Bush.

Maquiavel ensinou que o príncipe deve preferir ser temido a ser amado. Na mesma linha, pode-se dizer que os presidentes devem preferir ser odiados a ser ridicularizados.

George W. tem-se exposto ao ridículo. Disse várias vezes que sua principal tarefa é trazer a democracia ao mundo muçulmano, e não se cansa de repetir que seu projeto avança de vento em popa – uma pretensão risível.

O que, de fato, está acontecendo?

– No Iraque, um tirano foi derrubado e dúzias de pequenos tiranos locais tomaram-lhe o lugar. O país sangra, dilacerado. As “eleições democráticas” levaram ao poder um governo que mal consegue governar a Zona Verde de Bagdá, cuja segurança depende dos soldados norte-americanos.

– No Afeganistão, um presidente “eleito” mal dá conta de governar a capital, Cabul. Fora da capital, mandam os chefetes locais. E aos poucos mas consistentemente os Talibãs estão reconquistando o país.

– No Irã, eleições democráticas elegeram um político destemperado, que muito fala e pouco faz, cuja atividade predileta é maldizer os Cruzados norte-americanos e a “entidade sionista”.

– Na Síria, há uma ditadura estável, que é deixada onde está sobretudo porque os sírios crêem que ruim com ela, pior sem ela.

– Na Turquia, manda um governo islâmico religioso, e a esposa do presidente cobre os cabelos com uma echarpe. Mais de 10 milhões de cidadãos curdos são discriminados e oprimidos. Muitos deles combatem na guerra de guerrilhas. Na campanha contra os curdos, o exército turco está a ponto de invadir o vizinho Iraque, feliz com a oportunidade de destruir ali o regime curdo, praticamente independente.

– O Líbano continua como sempre muito longe de ser democrático. Não se cogita de promover eleições democráticas, nas quais todos os cidadãos votem para eleger diretamente o Parlamento, sem divisões sectárias. É indispensável eleger um novo presidente, mas nada é mais impossível, dado o larguíssimo fosso que separa as várias seitas. Esta semana, o Hizbullah realizou grandes manobras, bem perto da fronteira com Israel. Impressionaram até o exército israelense.

– No Egito, Jordânia e Arábia Saudita, os três países ditos “moderados” (quer dizer, são ditaduras pró-EUA), há um tipo muito estranho e original de democracia: toda a oposição política fenece nas prisões.

– Na Palestina, houve eleições impecavelmente democráticas, realizadas sob estrita supervisão internacional, as únicas eleições democráticas em todo o mundo árabe. Eleições que teriam enchido de orgulho George Bush, não fosse o fato de que lamentavelmente o lado “errado”, o Hamas, teve mais votos. Agora, o serviço de inteligência do exército de Israel profetiza que o presidente Mahmoud Abbas, favorito de Bush, corre o risco de cair imediatamente depois da conferência de Annapolis caso a conferência fracasse, como prevê-se que fracassará.

– E agora é o Paquistão. Parecia que, afinal, Bush começava a colher alguns sucessos. Trouxe de volta Benazir Bhutto, também sua favorita, e tudo parecia andar às mil maravilhas: ia-se instalar um regime democrático, o presidente parecia pronto para pendurar a farda e formar uma coalizão com Bhutto. Mas, então, uma bomba explodiu perto do carro blindado de Benazir; houve dúzias de mortos. O general-presidente, que só esperava uma oportunidade como esta… deu um golpe de Estado contra si mesmo e, em vez de lá deixar sua ditadura moderada, ‘fechou’ de vez o regime, numa espécie de versão paquistanesa do governo do falecido Saddam Hussein.

Como nas comédias de Hollywood, George Bush lá está, com uma torta de creme escorrendo-lhe pela cara, ridículo.


NENHUM PRESIDENTE gosta de fazer papel ridículo. Causar medo, OK. Fazer cara de muito mau, OK. De meio bobo, OK. Mas... completamente ridículo? Nunca!

Tudo isto pode influir diretamente sobre uma questão que preocupa o mundo todo, inclusive a mim: Bush atacará o Irã?

A tentação já é quase irresistível. Mais um ano e seu mandato estará acabado. Passaram-se oito anos, e Bush não tem o que mostrar – exceto uma fieira ininterrupta de fracassos. Um homem que (como ele diz) mantém contato direto e diário com Deus não sairá assim do palco da história.

Bush sonha com algum tipo de sucesso em Annapolis. No máximo, haverá uma declaração oca, assinada pelos líderes de Israel e da Autoridade Palestina. Haverá boas fotos, mas nada que satisfaça os leões. Falta uma presa maior, algo para marcar os anais da história.

O que poderia ser melhor do que salvar a humanidade da bomba nuclear iraniana?

Há uma expressão em alemão, para isto: "Flucht nach vorne" – fuga para a frente. Se não souber mais o que fazer, ataque o inimigo mais próximo. Assim Napoleão invadiu a Rússia, movimento que Hitler repetiu anos depois. Bush pode atacar o Irã, movido por causas semelhantes.

Suspeito que a decisão já esteja tomada e que os preparativos estejam em andamento. Não há provas, mas Bush tem agido como quem já decidiu que a guerra virá.

A descomunal máquina de propaganda de Washington trabalha sem descanso para preparar o terreno, atropelam-se os opositores. Pesquisas indicam que o apoio à guerra cresce dia a dia, entre os cidadãos norte-americanos. A maioria já é favorável à guerra. O novo presidente da França, em ritmo de adolescente hiperativo, já saltou sobre a diligência e já superou Tony Blair junto a Bush, na fidelidade de cãozinho poodle.


ISRAEL tem papel central a desempenhar nessa cena.

Aqui também já está em operação uma enorme máquina de lavagem cerebral. O Ministério de Negócios Estrangeiros associou-se ao mesmo esforço e já começou uma campanha mundial para desmoralizar Mohammed al-Baradei – nome muito respeitado e chefe da Agência Internacional de Energia Atômica. Todos os dias, a imprensa servil publica matérias de correspondentes e colunistas, que são, exclusivamente, porta-vozes camuflados do exército e do governo. Dizem e repetem que, em cerca de 18 meses, o Irã já terá uma bomba nuclear; portanto, está marcada a data do fim de Israel e do mundo. Como diz uma expressão hebraica, querem fazer-nos engolir o remédio antes da doença. O caminho é sempre o mesmo: bombardeie, bombardeie, bombardeie!

Um dos possíveis cenários é: Israel inicia o bombardeio. Os iranianos respondem com mísseis contra Israel. Então… os EUA entram em ação “para salvar Israel”. Que político norte-americano atrever-se-á a protestar? Quem? Hillary Clinton??

Bush está novamente sonhando com uma guerra sem mortos norte-americanos. Ataques aéreos “cirúrgicos”. Uma chuva de bombas “inteligentes” chovendo sobre milhares de alvos iranianos – nucleares, governamentais, militares, civis. Que sonho mais doce: o Irã rende-se rapidamente. O regime dos aiatolás entra em colapso. O filho do último Xá assume o trono de seu pai, o qual já foi um dia reposto no poder por baionetas dos EUA.

Como já disse, esse cenário não me convence. O que realmente acontecerá é que o Irã fechará o estreito de Hormuz. Por este estreito, que leva o nome de uma antiga divindade persa, flui 20% do suprimento mundial de petróleo. Mede 270 km de comprimento e, no ponto mais estreito, apenas 35 km de largura. Bastam alguns mísseis e minas, para fechá-lo. Será tolerável, se a guerra durar poucos dias. Mas se durar meses, provocará profunda crise em todo o mundo.

E a guerra prosseguirá. Não haverá escapatória para os EUA, senão mobilizar imensas forças terrestres para conquistar, primeiro, a região que cerca o estreito e, depois, todo o país, um grande país. Os EUA não têm forças disponíveis de reserva – e não as têm mesmo antes de o exército norte-americano ser exposto, no Iraque, a ataques de mísseis iranianos e da guerrilha xiita – que é maioria no Iraque.

Não será nem uma guerra rápida nem uma guerra fácil. O Irã é diferente do Iraque. Comparado ao Iraque, com seus vários povos e seitas, o Irã é relativamente homogêneo. Esta guerra do Irã será uma guerra do Iraque multiplicada por 10, talvez por 100.


E NÓS? Como atravessaremos esta guerra?

Dado que o governo de Israel e seus aliados norte-americanos pressionam a favor do ataque com todo o poder que têm, Israel não poderá deixar de contribuir para a luta, se os norte-americanos o exigirem. Primeiro, usarão nossa Força Aérea, depois talvez requisitem forças terrestres.

Mas Israel também se converterá em campo de batalha. Os patéticos mísseis de Saddam Hussein, em seus dias, causaram pânico em Tel-Aviv. O que farão os mísseis iranianos?

Os governos árabes são compelidos a apoiar os EUA, pelo menos nos discursos. Mas os corações e almas dos povos árabes, do Marrocos ao Iraque, estarão com os iranianos, defendendo-se eles também contra americanos e israelenses. Sobretudo se o encontro de Annapolis não for, como se desconfia que não será, a redenção do povo palestino.

Só há um modo de alguém sair inteiro desse confronto: não entrar nele. Contudo, depois de todos os reveses que sofreu no Iraque, no Afeganistão e, agora, no Paquistão, o que convencerá Bush a resistir à tentação? E como persuadir Ehud Olmert, que anseia por uma via para escapar da arapuca em que está metido?

Diz-se que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Para um político fracassado, o último refúgio é a guerra.

* The Last Refuge. Original em inglês em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html.

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