quinta-feira, 3 de julho de 2008

LEITURAS DE VEJA.... Por Gabriel Perissé em 19/2/2008


O professorado e a "baboseira ideológica"


A edição nº 2047 (de 13/2/2008) da revista Veja dedicou um

espaço considerável ao tema da educação nacional. A entrevista

com a secretária estadual de Educação em São Paulo, Maria

Helena Guimarães de Castro, e os artigos dos economistas

Claudio deMoura Castro e Gustavo Ioschpe compõem uma

espécie de concepção "vejiana" da educação.


A secretária Maria Helena enfatiza que um dos maiores

problemas da deplorável situação da educação em

São Paulo (leia-se, por exemplo, matéria da Folha,

publicada faz um ano) é o insatisfatório

nível profissional dos professores. Os professores

seriam incapazesde dar boas aulas. Quando a jornalista

Monica Weinberg lhe pergunta qual o caminho para

melhorar esse nível, a resposta da secretária é, digamos,

corajosa: "Num mundo ideal, eu fecharia

todas as faculdades de pedagogia do país, até mesmo as mais

conceituadas, como a da USP e a da Unicamp, e recomeçaria

tudo do zero." Essas faculdades apenas perpetuariam

"baboseira ideológica".


Maria Helena é socióloga, mestre em Ciência Política pela Unicamp

e, segundo informações oficiais, está concluindo doutorado na

USP em Ciências Sociais. Sua crítica, portanto, é de quem se

sente apta a julgar como totalmente ineficazes os professores

que ao longo das últimas décadas deram o tom da formação

pedagógica brasileira. Pensemos nas aulas, conferências e

escritos de Dermeval Saviani (Unicamp) e

Antonio Joaquim Severino (USP), para mencionar,

entre tantos outros, dois acadêmicos de prestígio.


O modelo da gincana


Seriam os doutores em pedagogia os principais responsáveis

por fomentar vários mitos que atrapalham a educação pública.

Para Maria Helena, é um mito afirmar que o aumento salarial

dos professores ou um plano de carreira influenciariam a

melhoria do ensino. Na sua opinião, dinheiro

(para falar curto e grosso) não resolve. A menos que esteja

vinculado a uma "política de reconhecimento do mérito".


Por isso, a secretária pretende pagar bônus a todos os que,

numa escola – funcionários, professores e diretor – "levarem"

os alunos a alcançar determinadas metas de bom desempenho.

Os bônus poderão chegar a três salários por ano.


Imagina Maria Helena que os professores, motivados pela

perspectiva de um prêmio pecuniário, insuflados pela súbita

adoção da meritocracia (como se esta existisse no plano

político...), realizarão o milagre de transformar a realidade

educacional. Essametodologia do burro atrás da cenoura

sussurra aos ouvidos do professor:

"Quer mais dinheiro? Então trabalhe mais!" Não leva

em conta os problemas reais que tornam a boa vontade e

o esforço do docente, por maiores que sejam, fonte de

mais estresse. Contudo, e vai aqui simplória sugestão

— uma vez que os bônus estarão

condicionados ao desempenho dos alunos, por que

não prometer também aos estudantes uma

participação? Uns 5% poderiam

incentivá-los a colaborar com essa escola de resultados!

A idéia simplista de que a repetência, o abandono escolar

(vale a pena ler matéria do Correio Braziliense), o

desinteresse crônico, a indisciplina, o fraco rendimento etc.

devem-se sobretudo à falta de bons "dadores de aula"

demonstra que o estilo "PSDB"

de governar não tem condições de analisar a realidade

educacional e oferecer soluções melhores do que o

modelo da gincana. Quem correr mais, quem tiver sorte

e/ou for mais criativo, atinge os

objetivos, ganha pontos e arrebata o prêmio.


Formação humanística


Não poucos alunos enfrentam problemas fora da

escola (famílias desestruturadas, ambiente social adverso,

falta de valores, de referências, carências alimentares e de

saúde) e esses problemas geram novas e complexas

dificuldades na sala de aula,

associadas a outros mil problemas que independem

de uma boa

aula. Aliás, impedem a boa aula que o bom professor

porventura

preparou. Como poderá a cenoura bonificadora fazer

professores e diretores deterem o tráfico de drogas

que invade as escolas,

consertarem móveis quebrados, reformarem os banheiros,

transformarem salas sem ventilação em paraísos didáticos,

evitarem a violência entre os alunos?

Há professores despreparados? Há. Escolheram o magistério

por idealismo (acreditaram na pedagogia do amor à la

Gabriel Chalita, ex-secretário da Educação no tempo de

Geraldo Alckmin) ou por falta de alternativas. São

sobreviventes de um ensino básico sofrível, de um ensino

médio deficiente, falta-lhes até mesmo estrutura física e

emocional para dar conta da sobrecarga de classes, expediente

necessário na luta por somar salários.

Há professores que faltam muito? Sim. Os que faltam,

não raro, fogem das condições de trabalho:

indisciplina incontrolável,

humilhações e arbitrariedades que usurpam sua

autonomia,falta de recursos materiais, falta de

tempo ede saúde por excessode atividades.

Lembrando que a maioria feminina

entre os docentes

põe em jogo outra questão para além da sala de aula.

São as mulheres que, professoras com 30 a 40 horas/aula

por semana, estão sobrecarregadas também pelas

tarefas domésticas.


E não só isso. Educar, ensinar, é tão ou mais

exigente do queoutras exigentes profissões.

Requer a prática da comunicação,

o dom da invenção, a capacidade de avaliar (intuitiva e

objetivamente) o comportamento humano (de crianças e

adolescentes!), forte autonomia profissional, virtudes que só se

desenvolvem com formação humanística prévia

e auto-aprendizagem

contínua. Estas, por sua vez, implicam leitura, reflexão, acesso

à cultura no sentido amplo, apoio profissional (bons cursos,

boas oficinas, orientação didática, ajuda psicológica) e

tranqüilidade econômica.


Salário não é tudo, mas...


Como uma espécie de comprovação das opiniões da secretária,

Claudio de Moura Castro escreve na mesma edição da Veja

um artigo igualmente curto e grosso: "Salário de professor".

Baseado em que, segundo as sempre infalíveis estatísticas,

os docentes brasileiros possuem remuneração compatível com

a realidade empregatícia nacional, o articulista conclui que os

sistemas públicos se tornariam mais eficazes se "conseguissem c

riar um ambiente mais positivo e estimulante". O exemplo estaria

nas escolas privadas, em que os professores, com "níveis salariais

parecidos", estão contentes.

O mais estimulante seria então a tal cenoura tentadora do

bônus? Moura Castro não afirma nem nega.

Menciona outrotema: o da gestão.

"Como a escola tem a cara do diretor", dependeria

então desse gerente do ensino, digamos assim,

valorizar os professores,

motivá-los, com bônus ou sem bônus. Mas se,

na prática, os diretores

são indicados pelo clientelismo dos governos locais ou,

medianteconcurso, estão politicamente compromissados

de modo mais oumenos velado com estes mesmos

governos, a escola desse diretordificilmente terá a cara

dos professores nem dos alunos que lá estão.

A propósito, recomendo que economistas e sociólogos

que se autoproclamam especialistas em educação

leiam outro uspiano(antes de se fecharem as faculdades

de Educação): o pesquisadorVitor Henrique Paro,

sobre a eleição de diretores em escola pública

como experiência democrática de grande valor.

Nenhuma palavra da secretária e do articulista

sobre a iniciativado governo federal de estipular

o salário mínimo dos professores

em 850 reais, o que significará um aumento de quase 50%.

Não concordam eles com o ministro Fernando Haddad?

Salário,concordo eu com eles, não é tudo, mas,

sem cuidar dos salários,

tornando-os, inclusive, atrativos para melhores profissionais,

o governo poderá jogar no sistema o dinheiro que bem quiser

(contratar consultorias, investir em computadores, instalar

câmeras para monitorar os alunos etc.), mas os

problemas continuarãoa se perpetuar.


Finlândia, o paradigma


O terceiro capítulo educacional dessa edição da Veja é assinado

porGustavo Ioschpe: "Pelo direito à ruindade". Gustavo

critica o MECpela iniciativa, que considera "antiliberal",

de averiguar melhor aqualidade do ensino superior

(em particular as faculdades de direitoe pedagogia),

sob pena de fazer reduzir a oferta de vagas ou mesmo

fechar o curso. Ora, não dissera a secretária de Educação

que, sefosse possível, fecharia todas as faculdades de

pedagogia, mesmoas que têm a melhor avaliação?

Não são essas faculdades que

prejudicam a escola, transmitindo baboseiras ideológicas em

lugar de ensinar os professores a serem professores?

A contradição é só aparente. No momento em que as faculdades

de pedagogia estivessem todas fechadas, sobretudo as públicas,

mais críticas, menos dóceis ao mando, tudo recomeçaria do zero.

Ou ficaria tudo na estaca zero. Quem quisesse abrir fábricas

de diplomas pedagógicos teria amplo direito de fazê-lo, sem

maiores impedimentos ou muitas cobranças, como em outros

tempos, e os professores formados nessas faculdades teriam

o dever de superar sua posterior "ruindade", rezando pela

cartilha da "pedagogia do bônus".

Estaria assim o mercado controlando as coisas ao seu modo:

o famoso "salve-se quem puder".

Mas o espírito "vejiano" continua a dar lições sobre a arte de

lecionar... Na edição desta semana (nº 2048, de 20/2/2008),

a revista Veja publica a matéria "A melhor escola do mundo".

Thomas Favoro, diretamente da Finlândia (país com

características idênticas às do Brasil), revela o que podemos

aprender em termos educacionais.


No quesito "salário", os professores finlandeses, infinitamente

melhores do que nós, recebem cerca de 2.500 dólares/mês;

nós embolsamos algo em torno de mil dólares/mês. Esclarece

a matéria, em letras minúsculas, que se trata de professores

do ensino fundamental com 15 anos de experiência.

Segundo o texto, e deve ser verdade, 100% dos professores

finlandeses possuem o mestrado. Já no Brasil, somente 2%.

Mas se depender da gestão do governador José Serra, essa

disparidade continuará. Em meados do mês de janeiro de

2008, suspendeu-se o programa "Bolsa Mestrado" para os

professores estaduais. O intuito deve ser viabilizar o tal

bônus que aí vem!

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